A terra é um motivo fundante das concepções da formação do Brasil. Representações hegemônicas da nacionalidade foram historicamente estruturadas por visões idealizadas e racializadas da natureza que subalternizaram os povos originários e as populações afro-brasileiras.

A terra também configura um motivo fundante nas cosmologias, filosofias e narrativas indígenas e negras que formam a maior parte da matriz cultural nacional. Nesta abordagem, conceitos e representações sobre a terra aparecem sob uma forma radicalmente distinta das construções coloniais-modernas. Apontam para um outro sentido de terra e território – como pertencimento, cultivo, direito, reintegração e reparação – e, deste modo, para outros imaginários de Brasil, tanto no passado como no futuro, como patrimônio e projeto, como arqueologia e design.

Intitulada Terra, a representação brasileira para La Biennale di Venezia de 2023 parte desta outra perspectiva para pensar o Brasil e o mundo – enquanto terra. Terra como solo, chão, roça, território, terreiro, mas também em seu sentido global e cósmico, como planeta e casa comum de toda a vida, humana e não humana. Terra como ancestralidade e porvir, olhando o patrimônio cultural, artístico e paisagístico construído por populações indígenas e afro-brasileiras como forma de ampliar o campo da arquitetura frente às mais prementes questões urbanas, territoriais e ambientais contemporâneas.

Seguindo o pensador e ativista indígena Ailton Krenak, assumimos que “o futuro é ancestral”, isto é, que a ancestralidade destas tecnologias espaciais nos mostram uma possibilidade de um mundo novo mas já presente, onde reparação e restauração são partes constituintes de uma mesma utopia arquitetônica e planetária, local e global.
Earth is a founding motif in conceptions of the formation of Brazil and of Brazilian identity. Hegemonic representations of nationality were historically structured by idealized and racialized views of nature that subalternized native peoples and Afro-Brazilian populations.

Earth is also paramount in the cosmologies, philosophies and narratives of the Indigenous and Black populations that make up the greater part of the national cultural matrix. In this approach, concepts and representations of earth appear in a form that is radically distinct from modern colonial constructions. They point to another meaning of earth and territory—as belonging, cultivation, right, reintegration and reparation—and thus to other imaginaries of Brazil, whether in the past or in the future, as heritage and project, as archaeology and design.

Titled
Terra [Earth], Brazil's representation for La Biennale di Venezia 2023 is based on this latter perspective for thinking of Brazil and the world—as earth. Earth as soil, ground, roça [swidden], territory, terreiro [yard or cult-houses], but also in its global and cosmic sense, as planet and common house of all life, human and non-human. Earth as ancestry and future, looking at the cultural, artistic and landscape heritage built by Indigenous and Afro-Brazilian populations as a way of expanding the field of architecture in the face of the most urgent contemporary urban, territorial and environmental issues.

Following the teachings of the thinker and Indigenous activist Ailton Krenak, we assume that "the future is ancestral", that is, that the ancestry of these spatial technologies show us a possibility of a future world, new but already present, where repair and restoration are constituent parts of the same architectural and planetary utopia, at once local and global.


ATERRAMENTO





Ao apresentar uma outra história da arquitetura brasileira e seu patrimônio, a curadoria não poderia deixar de contestar a neutralidade do espaço em que se insere: a própria arquitetura do Pavilhão do Brasil no Giardini.

O pavilhão é um patrimônio modernista icônico, desenhado por Henrique Mindlin, expoente do movimento na construção do ideário de modernidade nacional, reificando a ideia que a tradição arquitetural brasileira provinha de matriz europeia.

Em diálogo crítico com este patrimônio e seus legados, a curadoria parte de uma série de intervenções site-specific que chamamos de “aterramento”.

Um novo chão de terra batida recobre todo o pavilhão, aludindo às tradições de casas indígenas e quilombolas. Em agradecimento a todos os Oris que compartilharam seu conhecimento ancestral, a segunda galeria é ornamentada com panos da Costa confeccionados pelas tecelãs do Alaka. Evoca-se as bandeirolas que adornam os barracões de candomblé, proteção e beleza ao pavilhão.

Na parte exterior, um conjunto de gradis com desenhos Sankofa reconfigura a fachada minimalista do pavilhão.

Elemento onipresente das residências brasileiras por todo o país, o desenho destes gradis foi marcadamente influenciado por saberes da diáspora africana. Funcionavam como sistemas de comunicação entre comunidades negras, trazendo simbologias de mitos de seus lugares de origem.

Um dos adinkras mais emblemáticos é o pássaro Sankofa, uma ave que olha para o passado enquanto voa para o futuro. Sankofa anuncia um olhar curatorial que se volta para a memória e para o porvir ao mesmo tempo, uma arqueologia que se apresenta como projeto.

O público é convidado a pisar sobre a terra, reconhecendo o Brasil como território ancestral e diaspórico. Ao entrar em contato com o solo, o público é também convidado a refletir sobre sua condição de habitante planetário, do local ao global, da terra à Terra.
In presenting a different history of Brazilian architecture and its heritage, the curators could not fail to challenge the neutrality of the space in which it is inserted: the very architecture of the Brazilian Pavilion at Giardini.

The pavilion is a building of iconic modernist heritage, designed by Henrique Mindlin, who was a referent in the construction of the ideology of national modernity, reifying the idea that Brazil’s architectural tradition was of European origin.

In critical dialogue with this heritage and its legacies, the curators set out with a series of site-specific interventions that we call “aterramento”.

A new earthen floor covers the entire pavilion, alluding to the traditions of Indigenous and Quilombola homes. In gratitude to all the Oris who shared their ancestral knowledge, the second gallery is adorned with Costa cloths made by the Alaka weavers. It evokes the flags that adorn the candomblé shacks, protecting and embellishing the pavilion.

Around the outside, a set of railings with Sankofa designs reconfigures the pavilion’s minimalist facade.

A ubiquitous element in Brazilian residences throughout the country, the design of these railings was markedly influenced by African diasporic knowledge. They functioned as communication systems between Black communities, referring to symbologies of myths from their places of origin.

One of the most emblematic
adinkras is the Sankofa bird, a bird that looks to the past while flying to the future. Sankofa announces a curatorial gaze that turns to memory and to the future at the same time, an archeology that presents itself as a project.

The audience is invited to set foot on the earth, recognizing Brazil as an ancestral and diasporic territory. By coming into contact with the earth, the public is also invited to reflect on their condition as planetary inhabitants, from local to global, from earth to Earth.





© Rafa Jacinto / Fundação Bienal de São Paulo









Como um reconhecimento da excelência de seu trabalho na promoção da cultura nacional ao longo dos seus mais de sessenta anos de atuação, o Governo Federal outorgou à Fundação Bienal de São Paulo a honra de selecionar a equipe curatorial e de produzir as mostras que ocupam o Pavilhão do Brasil – edificação que recebe visitantes da Biennale di Venezia desde a sua inauguração, em 1964. Estar ao lado do Ministério da Cultura e do Ministério das Relações Exteriores em mais uma Mostra Internacional de Arquitetura tem um lugar especial neste momento histórico, que impõe grandes desafios para um mundo em constante transformação e que busca respostas para as questões mais urgentes que nascem da relação da sociedade com o espaço que ela habita. Ao colocar o público em contato direto com o chão feito da matéria que lhe dá título, Terra se volta para práticas de matriz africana e indígena reconhecidas hoje como patrimônio brasileiro e que contribuem para o debate contemporâneo em um duplo movimento: o de reparação em relação a um legado ancestral soterrado, mas que vem à tona como alternativa concreta de construção coletiva de um futuro que transcende fronteiras.



José Olympio da Veiga Pereira,
Presidente da Fundação Bienal de São Paulo



In recognition of the excellence of its work in promoting national culture over its more than sixty years of operation, the Federal Government has granted the Fundação Bienal de São Paulo the honor of choosing the curatorial team and producing the exhibitions that are held in the Brazilian Pavilion—a building that has welcomed visitors to the Biennale di Venezia since its inauguration in 1964. To be alongside the Ministry of Culture and the Ministry of Foreign Affairs in another International Architecture Exhibition has a special place in this historical moment, which poses great challenges for a world in constant transformation and that seeks answers to the most urgent questions that arise from the relationship between society and the space it inhabits. By putting the public in direct contact with the ground made of the substance that gives it its title, Terra turns to practices of African and Indigenous origin recognized today as Brazilian heritage and that contribute to the contemporary debate in a double movement: that of reparation in relation to a buried ancestral legacy, but which surfaces as a concrete alternative for the collective construction of a future that transcends borders.


José Olympio da Veiga Pereira,
Fundação Bienal de São Paulo



Sobre a participação brasileira na 18ª Mostra Internacional de Arquitetura da Biennale di Venezia


A prerrogativa da Fundação Bienal de São Paulo na realização da representação oficial do Brasil nas bienais de arte e arquitetura de Veneza é fruto de uma parceria de décadas com o Governo Federal, que outorga à Fundação Bienal a responsabilidade pela nomeação da curadoria e pela concepção e produção das mostras em reconhecimento à excelência de seu trabalho no campo artístico-cultural. Organizadas com o intuito de promover a produção artística brasileira no mais tradicional evento de arte do mundo, as exposições ocorrem no Pavilhão do Brasil, projetado por Henrique Mindlin e construído em 1964.  

About Brazil’s participation in the 18th International Architecture Exhibition of the Biennale di Venezia


The prerogative of the Fundação Bienal de São Paulo to officially represent Brazil in the Biennale di Venezia is the result of a decades-long partnership with the Brazilian Federal Government, which has granted the Fundação Bienal the responsibility of appointing the curators and conceiving and producing the exhibitions, as a recognition of the excellence of its work in the artistic and cultural field. Created with the aim of promoting Brazil’s artistic production in the most traditional art event in the world, the exhibitions take place in the Brazilian Pavilion, designed by Henrique Mindlin and built in 1964.



Sobre a Fundação Bienal de São Paulo


Fundada em 1962, a Fundação Bienal de São Paulo é uma instituição privada sem fins lucrativos e vinculações político-partidárias ou religiosas, cujas ações têm como objetivo democratizar o acesso à cultura e estimular o interesse pela criação artística. A Fundação realiza a cada dois anos a Bienal de São Paulo, a maior exposição do hemisfério sul, e suas mostras itinerantes por diversas cidades do Brasil e do exterior. A instituição é também guardiã de dois patrimônios artísticos e culturais da América Latina: um arquivo histórico de arte moderna e contemporânea que é referência na América Latina (Arquivo Histórico Wanda Svevo), e o Pavilhão Ciccillo Matarazzo, sede da Fundação, projetado por Oscar Niemeyer e tombado pelo Patrimônio Histórico.

About the Fundação Bienal de São Paulo


Founded in 1962, the Fundação Bienal de São Paulo is a private, nonprofit institution with no political or religious affiliations, whose actions aim to democratize access to culture and foster interest in artistic creation. Every two years, the Fundação holds the Bienal de São Paulo, the largest exhibition of the Southern Hemisphere, and its traveling exhibitions in several cities in Brazil and abroad. The institution is also the custodian of two items of Latin American artistic and cultural heritage: a historical archive of modern and contemporary art that is a standard reference in Latin America (the Arquivo Histórico Wanda Svevo), and the Ciccillo Matarazzo Pavilion, the head office of the Fundação, designed by the architect Oscar Niemeyer and listed as historical heritage.